quarta-feira, 25 de maio de 2011

G.R.E.S. Paixão


Havia naquela comunidade, muitas mulheres bonitas, cheias de ginga, alegres. Mas nenhuma se comparava a Jéssica. Ela era a própria personificação da beleza, não só pelo sorriso branco, que fazia um belo contraste com o negro de sua cor... era bonita por inteiro, belos cabelos, uma boca voluptuosa, cinturas que pareciam ter vida própria. Não existia um homem sequer que não observasse quando ela passava, aliás, nem precisava passar. As outras passistas não cansavam de invejá-la. Principalmente Dolores, de quem ganhara o posto de Princesa do Samba, com seus comentários maldosos. Mas Jéssica nem se importava, não dava bola para qualquer dos comentários, fosse o dos homens ou da legião de invejosas, igualmente grande. Só tinha olhos pra Chico Valadão, um cara sem graça, meio tampinha, magrelo, com jeitão de malandro, mas que se gabava do vozeirão que tinha. Aliás, não devia em nada ao Louis Armstrong. Quando dava o grito de guerra da escola na Sapucaí, Toda a avenida se arrepiava.
Chico era um cara vaidoso, só usava perfume importado, calça alinhada, camisa bem passada, chapéu panamá, nem de longe se dizia que trabalhava no Ceasa todo dia, onde começava sua labuta às quatro da manhã... E foi a ele que Jéssica devotou seu amor, carinho, cuidado e fogo.
            - O que essa negona faz com esse mané? É um desperdício!
Essa era a frase que mais se ouvia.
Mas desde que Chico chegou para a comunidade, Jéssica ficou encantada pela sua voz, pela forma como cantava, mas segundo ela, principalmente pela forma que ele pronunciava seu nome. Aquilo era amor de fato, ou uma paixão avassaladora? Segundo Chico, era Jéssica a única mulher por quem tinha se apaixonado, mesmo depois de seus sete casamentos e nove filhos.
            A verdade é que o chamego dos dois chegava a enojar de tão meloso. Era beijinho, carinho, afago, sussurros suspiros e até gritos, que muitas vezes eram ouvidos na área toda que circundava o barraco de Jéssica, onde Valadão se instalou depois que a deusa o declarou seu homem. Aliás, era o rei daquela rainha negra... A única paixão comparável a que tinha por ele era o samba. E como sambava a nega... Tinha um orgulho grande por isso. Dizia que jamais deixaria o samba.
            - Nem se o meu nego pedir, faço isso. Minha vida é sambar!
Afinal aquele sorriso nunca tinha sido tão brilhante, tão alegre, tão vivo, tão cheio de malícia, desde que encontrara seu neguinho. Contava todo dia, pra todo mundo, suas brincadeiras, como aquele homem a fazia feliz.           
Ele não deixava de contar vantagem, de falar na comida bem feita, dos cafés servidos na cama, que jamais deixaram de ser servidos ao longo daqueles seis meses desde que assumiram seu caso, pelos botequins onde passava. Como todo bom homem do samba, Chico, apesar de apaixonado por Jéssica, nunca dispensava uma “loura”. Essas, segundo ele, eram espécies de tônicos.
De fato, era uma história bonita. De deixar Romeu e Julieta invejosos.
Mas um dia o sorriso da negona amarelou. Encontrara Chico, bêbado, nos braços de sua maior rival: Dolores. Que foi algo mais doloroso pelo fato de ter sido em sua cama.
- Nego filho da puta, tu podia fazer tudo, pegar quem quisesse, mas não essa vagabunda. Como é que tu fez isso?
Chico ainda tentou se explicar, sem sucesso. Jéssica chorou. Mas nem por isso deixou de partir pra cima dos dois de porrada. Foi vassoura, lustre, o São Jorge que ficava na cabeceira da cama.
 Foi expulso da casa de Jéssica, do jeito que estava: bêbado feito um gambá, e só vestindo a samba-canção que tinha ganhado de presente no dia dos namorados.
Apesar dos malandros terem ficado alvoroçados com o fato de ter visto aqueles dois monumentos de ébano se engalfinhando, ficando quase peladas, outros já se candidatavam para consolar a pobre Jéssica. Afinal o terreno estava livre. O neguinho folgado tinha sido banido da cama e da vida daquela gostosura...
Os dias passavam e o sorriso de Jéssica não se fazia mais perceber. A postura, outrora altiva, deu lugar a uma mulher comum; o gingado que fazia o maior puritano pecar, já não participava mais dos ensaios da escola. Aquele tinha sido um golpe de que não pôde se recuperar. Seus dias agora eram do Saara, onde trabalhava, para casa, durante a semana. Nos finais de semana, ao invés do pagode, agora Jéssica se dedicava somente a arrumação do barraco. Rotina que mudou, quando reencontrou Raquel, sua irmã mais velha que, sabendo do ocorrido resolveu visitá-la e aconselhá-la.
- Jéssica, essa vida que você leva só te traz tristeza, dor, rancor. Jesus te fez pra poder viver o melhor. O Capeta tá brincando com você. Vou trazer aqui o missionário pra fazer uma oração forte!
Raquel tinha se convertido há mais ou menos um ano. Apesar de ser uma mulher quase tão bonita quanto sua irmã, resolveu abdicar em favor de Jesus e da Missão, como ela dizia. Desde então só andava com longos vestidos brancos, de coque na cabeça e Bíblia na mão.
Apesar de resistir à evangelização imposta por sua irmã, Jéssica resolveu aceitar a oferta e deixou que o Missionário Jedaías fosse até sua casa.
No domingo havia arrumado sua casa, como de costume e esperou até as três da tarde. Hora que Raquel chegou, acompanhada do missionário e mais uns quinze “irmãos” para fazerem uma oração pela pobrezinha, que já minguava, por conta daquele desgraçado Chico Valadão, então vivendo com Dolores, que não cansava de tripudiar de Jéssica.
- Perdeu o posto de princesa e o homem pra mim, Jessiquinha...
Não esperava mais por nada na vida que vivera, então, após muita oração, muita gritaria e um sem número de “aleluias” e “glórias a Deus”, Jéssica decidiu que abandonaria a vida mundana e se entregaria a Jesus. Queimou seus shortinhos e seus tops, Quebrou sua coleção de CD’s e DVD’s do Zeca Pagodinho e outros sambas e pagodes que adorava. Passou a se vestir feito um “fantasminha”, porque agora era uma mulher de Deus e aquelas coisas não faziam mais parte de sua vida. Abandonou o emprego na loja de biquínis que trabalhava no Saara e passou a trabalhar numa livraria evangélica.
Todos os que antes curtiam bebiam, e sambavam junto com ela se afastaram porque passaram a ser alvo de sua pregação.
Já não se escutava mais o samba vindo do barraco daquela que um dia foi a negra mais formosa daqueles cantos. No lugar disso, só hinos religiosos, “aleluias” e “glórias a Deus”. Até em línguas estranhas ela começou a falar.
- Agora sou do Senhor, batizada nas águas e no Espírito Santo. Não se cansava de dizer isso.
No fundo, Jéssica não se encontrava muito naquele novo “modus vivendi”, mas foi o grande consolo que achou em sua vida depois que foi traída por Chico Valadão. Trancava-se em seu quarto e colocava os CDs da Cassiane no volume mais alto. Toda vez em que a bateria começava a tocar e o nego soltava a voz. O que era seu amor, virou seu sofrimento. O samba a fazia se fechar.
            O povo da comunidade sentia saudade da grande Jéssica, o ensaio também não era mais o mesmo. Nem a voz de Chico tinha mais o mesmo timbre ou força. Nem mesmo Dolores tinha tanta graça mais, já que a sua grande rival estava fora de combate. O samba perdera Jéssica para a Igreja Pentecostal da Revivificação. O missionário Jedaías, quando visitava Jéssica, passava com um ar soberbo, de quem tirou a grande princesa do samba da vida mundana e transformara numa fiel...
            Jéssica travou uma luta interna durante uns cinco meses. Fevereiro estava chegando, como ela se comportaria com a chegada do Carnaval. Quando este chegou, foi para um retiro com os “irmãos” para Cachoeira de Macacu. Passou quatro dias “como se estivesse no céu”, segundo ela mesma disse. Voltou à sua comunidade na quarta feira de cinzas. Passou pela quadra, onde assistiam a apuração. Sentiu um calafrio. A cada nota dez que ouvia, junto com os gritos da comunidade, a negona, tomava conta dela de novo. O calor subia, ao coração batia ao ritmo da bateria da escola. Começou a revirar seu guarda roupa e ao mesmo tempo se achava uma grande pecadora, por aquela vontade tomar conta dela, até que ouviu que estava no último quesito da apuração. Foi correndo para quadra, mesmo com aquele vestido branco que escondia seu belo corpo... Na última nota, aquele “fantasma” chega na quadra, o que causou um espanto geral. Nem olharam para a TV que estava no bar da escola. Somente Jéssica prestava atenção. Que deu um grito:
            - É Campeã!!!!!!!! E a sua princesa voltou!
            Ninguém mais queria saber do resultado, todos correram pra abraçá-la e comemorar o que tinha sido a grande vitória daquele Carnaval: A princesa de ébano daquela escola estava de volta! Isto é melhor do que qualquer título na Sapucaí!

Autor: Glaucio Merlin

Um comentário: